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08/08/2022 as 16:23 | Por Eduardo Mahon |
NÊGA DO CABELO DURO?
Ora, por que alisar o cabelo, se ele vai enrolar novamente? Essa é a questão trazida pelo samba que também foi gravado pela maranhense Cecília Leite.
Fotografo: imagem pessoal
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Ouço pela enésima vez o álbum Três Meninas do Brasil, de 2008. É um dos meus preferidos. O conjunto formado por Jussara Silveira, Rita Benneditto e Teresa Cristina, apresenta um arranjo acústico impecável. Como estratégia, as artistas sublinham simultaneamente o talento individual e o resultado do conjunto. A seleção é igualmente sofisticada. No repertório, a música “Na cabecinha da Dora” (Antonio Vieira e Eugênio Giusti) e “Nêga do cabelo duro” (David Nasser), a última imortalizada pela grande Elza Soares.
 
“Na cabecinha da Dora/ Meu pensamento concentro/ Tem muito rolo por fora/ E pouco miolo por dentro” – é o começo da canção. Trata-se de uma visão preconceituosa da mulher negra? “A crioula tem um zelo/ Para agradar o crioulo/ Ela manda esticar o cabelo/ Depois mete o cabelo no rolo” – prossegue a letra. Ora, por que alisar o cabelo, se ele vai enrolar novamente? Essa é a questão trazida pelo samba que também foi gravado pela maranhense Cecília Leite. Como interpretar a letra?
 
A primeira hipótese diz respeito à visão preconceituosa na qual se construiu estruturalmente a sociedade brasileira, marcadamente a partir a partir da mentalidade eugênicas do fim do século XIX.
 
Ao ler a letra, podemos perceber o uso do diminutivo “cabecinha” para caracterizar a superficial capacidade intelectual de Dora. A canção prossegue com a referência “há muito rolo por fora e pouco miolo por dentro”, isto é, trata-se de uma mulher vaidosa, mas frívola e volúvel. Os rolos que existem por fora da “cabecinha” de Dora podem assumir um duplo sentido: o aspecto natural crespo e a agressividade pessoal da mulher. “Muito rolo” poderia ser tomado como confusão/desequilíbrio às voltas da presença desta mulher. Ou, simplesmente, Dora tem alguma neurose com a questão do alisamento do cabelo, verdadeiro motivo da crítica.
 
“Nêga do cabelo duro/ Qual é o pente que te penteia?” – é o início da famosíssima marchinha carnavalesca de David Nasser, lançada em 1942, pelo conjunto Anjos do Inferno. A música trata de uma mulher sensual que tem dificuldades para “domar” os cabelos crespos. Novamente, a perspectiva da mulher negra sensualizada com os cabelos em desalinho está evidenciada. Concentra-se no cabelo o “problema” insolúvel da raça negra, aspecto que foi usado como alvo histórico do preconceito e, ainda hoje, renova-se em várias manifestações contemporâneas. Noutras palavras – a falta de pente não é mais do que a inadaptabilidade do negro à “civilização”.
 
Por que Elza Soares cantaria essas canções? Dona de uma consciência social clarividente, estreou no programa de calouros de Ary Barroso, dizendo que vinha do “planeta fome”. Referia-se à favela carioca, um universo até então pouco conhecido para a classe média brasileira que assistia à programação. Qual seria o objetivo de Elza ao reproduzir o preconceito contra si mesma? Ela, de fato, fez isso? O mesmo questionamento está destinado às três intérpretes do álbum de 2008, duas delas negras. Por que cantariam músicas que replicam a imagem da mulher sensual e intelectualmente incapaz? O caso é um aparente paradoxo.
 
A discussão é bastante oportuna. Estamos todos refletindo sobre a necessária revisão histórica das expressões culturais do passado. Em tempos de políticas de cancelamento – espécie de boicote articulado em redes sociais que encontra ampla comoção – é essencial que nos perguntemos se devemos dispor de uma única interpretação sobre o fenômeno cultural (passado e presente), dissolvendo o aspecto estético para priorizar exclusivamente o viés temático. No contemporâneo, em termos de comunicação social, o bom está sendo identificado com o bem, uma antiquíssima questão que ensejou e ainda vai ensejar muito debate.
 
Voltemos à questão central. Três Meninas do Brasil reproduz o preconceito racial e misógino? Acredito que não. Ao inverter o jogo de representações, forma-se a paródia que é o principal signo da atualidade. Uma negra cantando “Nêga do cabelo duro” certamente gira o eixo da recepção. O público percebe imediatamente que se trata de uma ironia que agora parte das mulheres que eram (e são) vítimas das fobias de uma sociedade desequilibrada. São elas quem ironizam o pensamento absurdo que era, de fato, levado a sério. Forma-se uma perspectiva diametralmente oposta ao preconceito. Expor o problema passa a integrar uma parte da solução.
 
Ao mesmo tempo em que as músicas são reinterpretadas em contexto invertido, importa que estão concretamente lembradas pelo aspecto estético. Trocando em miúdos: são boas músicas. Na minha opinião, ótimas músicas. Parece-me uma boa equação essa que contemple a atualização da crítica sem, contudo, eliminar estéticas brasileiras de grande qualidade. Trata-se de preservar o que o passado tem de bom, sem ser conivente com o que deve ser esclarecido e superado.
 
Em Três Meninas do Brasil, as intérpretes apontam o caminho com a música de Zeca Baleiro – “minha tribo sou eu”. De fato, estamos entrando na era da identidade eletiva. Que cada um de nós encontre a sua tribo e que, juntos, possamos conviver com respeito.
 
Eduardo Mahon é advogado e escritor.
 
Colaborou:  Astrogildo Nunes – astrogildonunes56@gmail.com
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